A menina que tudo questiona continua actual… e sem rugas. A fantástica personagem Mafalda, de Quino, chega aos 50 sagaz e anticonformista, sem perder relevância. Os 50 anos das suas tiras de BD inconformistas, e o seu espírito rebelde, não podiam estar mais em voga num mundo em convulsão. “Muitas das coisas que ela questionava ainda não foram resolvidas”, sintetiza o desenhista Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino, que deu vida a Mafalda de 1964 a 1973. O autor publicou o seu primeiro trabalho em 1963, mas foi a pequena menina de cabelo preto e fita vermelha que o levou à fama, em 1964. Quino tinha esboçado a personagem um ano antes, numa tira para a publicidade de uma marca de eletrodomésticos, mas que não prosperou. "Adaptei a tira. Como não tinha que elogiar as virtudes de nenhum aspirador, fi-la reclamar, algo carrancuda." Quino encerrou as aventuras da personagem em 1973. O autor afirma que acabou com a série por "estar cansado de fazer sempre a mesma coisa". Em 1976, com o golpe militar na Argentina, Quino exilou-se em Milão, mas a sua Mafalda continuou a habitar o país. "Acredito que tal aconteceu porque a arte das tiras era considerada um género menor, que não representava uma ameaça como voz histórica. Os desenhos não aparentavam ser uma arte altamente intelectual e eram percebidos como entretenimento". Hoje, Mafalda é muito popular em vários países e Quino afirma não ficar surpreso com o facto de ser uma das 10 figuras argentinas mais famosas do século XX. "Acredito que a temática é comum a todos os grupos familiares humanos, estejam na China, na Finlândia ou na América Latina". Muitos chegam a comparar a menina argentina de classe média com Charlie Brown, personagem criado pelo americano Charles Schulz. Mas para Quino, "Mafalda pertence a um país denso de contrastes sociais, que apesar de tudo queria integrá-la e fazê-la feliz, mas ela nega e rejeita todas as ofertas. Charlie Brown vive num universo infantil próprio, do qual estão rigorosamente excluídos os adultos, com a diferença de que as crianças querem tornar-se adultos. Já Mafalda vive num contínuo diálogo com o mundo adulto, mas rejeita-o, reivindicando o direito de continuar a ser uma criança". De acordo com o desenhista, Schulz criou personagens antipáticos, simpáticos, bons, maus, invejosos e isso foi uma revolução. "Eu inspirei-me bastante nele, mas, como não sou americano, fiz uma adaptação muito argentina e própria da coisa". A efeméride do cinquentenário foi celebrada na última edição do Festival Internacional de Angoulême, em França, o mais importante evento do mundo dos quadradinhos, que montou uma exposição em homenagem a Mafalda. A cada ano, cerca de 200 mil ilustradores, argumentistas, editores e apaixonados pelas histórias em BD reúnem-se nesta aprazível cidade para celebrar o género. E nesta edição, foi possível visitar uma réplica do apartamento em que vivia Mafalda e da sala de aula onde ela lançava as suas frases que pulsavam sinceridade. Também andavam por lá os seus companheiros Manolito, Felipe, Susanita e Miguelito. “Às vezes, surpreende-me o facto de algumas tiras feitas há mais de 40 anos ainda serem aplicáveis hoje”, explica o autor, de 81 anos, que não pôde viajar para o evento por questões de saúde. Aliada a uma recriação do mundo, que reflete a classe média progressista argentina dos anos 1960, a organização do festival de BD reuniu ainda tiras originais, reproduções e materiais que serviram de inspiração ao desenhista da célebre menina de seis anos, que usa um laço na cabeça e detesta sopa. “O que me surpreende é ver que minha obra se desenvolveu desde sua publicação até o dia de hoje, e que boa parte dos temas, para não dizer todos, continua atual e compreensível”, explica Quino numa entrevista por email à AFP de Madrid, onde mora parte do ano. No tempo restante, vive em Buenos Aires.
Menina idealista e sincera, Mafalda nunca se calou perante a inquietude que lhe causava um mundo adulto, que não lhe oferecia respostas satisfatórias, algo que persiste até ao século XXI. E, mesmo que seja só uma tirinha de banda-desenhada, como insiste o seu criador, a mesma traduz matizes da personalidade do próprio que a fez. Quino sempre se definiu como um “pessimista”, que mantinha sempre viva a “ilusão de que sua obra servia para mudar alguma coisa”. Através do olhar crítico da sua menina de classe média, Quino apresentou a própria visão anticonformista do mundo. Os seus temas favoritos são os problemas económicos e sociais, as desigualdades, a injustiça, a corrupção, a guerra e o meio ambiente. "Sem ir muito longe, no ano passado saiu em Itália um livro sobre a Mafalda. O mais incrível é como muitas das histórias pareciam fazer referência directa à campanha de Berlusconi", comenta. Ao ser questionado sobre como vê a Argentina e o mundo de hoje, Quino mantém a postura. "A nossa obrigação é acreditar que o futuro vai ser melhor, mas no fundo sabemos que tudo continuará a ser como até agora"… Não diria Mafalda o mesmo? Para marcar a festividade, há exposições previstas na Argentina, Itália, Espanha, Canadá e México sobre a Mafalda e os 60 anos de carreira do seu autor.

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