Em vésperas de Oscars e com oito nomeações, venho-vos falar de "Vice", um interessante filme a que assisti à sua antestreia e que já se encontra nos cinemas há uma semana. Esta película versa sobre o antigo vice-presidente dos EUA e permite-nos fazer a ligação entre o passado e a política da actualidade. É um "biopic" cinematográfico consagrado à ascensão do controverso ex-vice-presidente de George W. Bush (2001-2009).

Para quem não saiba, Dick Cheney foi um dos homens fortes da América cujo legado é deixado duma forma reservada pela forma como usou o seu poder e explorou o mesmo para seu bel-prazer. E ocupa um lugar na História pela presidência complicada de George W. Bush a lidar com vários acontecimentos que moldaram o mundo no início do milénio, entre um inesperado ataque terrorista e as subsequentes guerras.

Acompanhamos a subida ao poder de Cheney no corpo de Christian Bale, que engordou para o papel. O actor, que em 2004 ficou de pele e osso em “O Maquinista”, e mais tarde bem mais musculado a fazer de Batman, assume agora a pele de um gordo careca que se tornou o tirano secreto da administração norte-americana, reproduzindo em detalhe o seu feitio, as suas expressões faciais e a sua forma de falar. Uma actuação que podemos aplaudir, onde o rigor da personagem e o trabalho de Bale, irreconhecível sob muitas camadas de caracterização e com 20 quilos a mais, a todos conquistou e entusiasmou os críticos. "Vice", que já colecciona nomeações e prémios em várias efemérides de cinema, tem aqui fortes possibilidade de arrecadar o Oscar de Melhor Actor. "Encarna a essência de Cheney", resumiu a revista Rolling Stone, enquanto a Variety afirma que "Christian Bale captura a personagem de Dick Cheney - seco, sarcástico, falsamente aborrecido [...] - com um brilhantismo que se aproxima da perfeição".

Por outro lado, temos o argumento de Adam McKay que, em quase 2h15m de filme, o também realizador é capaz de recriar factos num ambiente descontraído, por vezes provocador. McKay, o mesmo realizador de "A Queda de Wall Street" (2015), empreende aqui uma missão em desacreditar Cheney de forma permanente, entretendo-nos com a sua abordagem niilista e objetiva do vice-presidente, fazendo-nos reflectir sobre o que seria o mundo de hoje se, num certo domingo de manhã, o telefone não tivesse tocado em sua casa...



Como um tecnocrata que dá prioridade à discrição, "Dick Cheney não era um indivíduo que procurava que fizessem um filme sobre ele", afirma Adam McKay. Porém, graças a uma gripe que deixou McKay de cama durante vários dias, o realizador acabou por “devorar” um livro sobre Cheney, "que não parou de me surpreender pela forma como mudou profundamente o curso da história dos Estados Unidos", explicou o próprio aquando a apresentação do seu filme.
"É uma personalidade muito forte, incrivelmente sólida, e, de certa maneira, ele entendia - talvez mais do que ninguém - como fazer funcionar as engrenagens do governo", explicou Bale sobre o ex-vice-presidente. Encarnação da linha dura dos neoconservadores americanos, Cheney também foi secretário da Defesa de 1989 a 1993, durante a primeira Guerra do Golfo (1991). Não apenas foi criticado pela sua política, como também pelas suas afirmações sobre a presença de armas de destruição em massa no Iraque e sua justificativa da tortura, a que chamou "técnicas melhoradas de interrogatório".
Cheney, de 77 anos, também foi suspeito de conflito de interesses: quando se candidatou a vice-presidente, em 2000, era diretor executivo da Halliburton, a segunda maior companhia petroleira do mundo, que enriqueceu graças à segunda guerra do Iraque, em 2003.



"Vice" mostra-nos os episódios entre o homem de poder na Casa Branca e o jovem originário de Wyoming, bêbado e grosseiro, que fora expulso da Universidade de Yale. A sua salvação aconteceu graças à mulher Lynne, encarnada por Amy Adams, cujo desempenho também recebeu aplausos de muitos críticos, assim como o de Sam Rockwell, que interpreta o presidente George W. Bush, um pouco perdido nos labirintos do poder, e de Steve Carell, caracterizado como Donald Rumsfeld.

Segundo a conceituada “Variety”, o filme nunca responde à pergunta de "Quem é Dick Cheney?", pelo que "o público deve contentar-se com conceitos como cobiça e poder". Contudo, o realizador insiste que "desde o início teve a vontade de humanizar essas personagens, de profundá-las, de entendê-las". McKay "criou algo que realmente rompe as convenções [...] É necessário porque o que vemos no ecrã pode ser muito triste e traumático", argumentou Christian Bale. Já segundo Steve Carell, um dos pontos fortes do filme é "que é muito contemporâneo, muito actual. Os espectadores farão, forçosamente, a conexão entre o passado e o que está agora a acontecer", assegurou o actor, certamente referindo-se, mas apenas dando a entender, ao actual residente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Com recurso a um peculiar narrador (Jesse Plemons), que surge em vários locais, representando várias funções sociais, e figurando como metáfora para os espectadores, Adam McKay coloca-nos no lugar dos afetados pela desinformação, sonegação e as acções ardilosas do político. Porém, em “Vice”, não cabe ao elenco o brilho maior, mas sim à linguagem empregada.

Incisivo e necessariamente crítico, “Vice” é um retrato da recente política norte-americana, que a todos faz reflectir. O realizador apresenta assuntos densos numa linguagem leve, de forma a torná-los acessíveis ao grande público e constrói uma narrativa própria de forma a explicar e entreter, sem menosprezar a nossa inteligência.

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