Arte e arquitectura sempre me fascinaram, cada uma à sua medida. Razão pela qual venho falar-vos de Freddy Mamani, que acaba por misturar ambas. Esta é também a história de um ex-pedreiro boliviano que se tornou engenheiro e construtor. Rapidamente, converteu-se no porta-estandarte de incongruências no país altiplano: as carências e luxos de uma rápida expansão urbana dispersa no El Alto, a cidade mais jovem da Bolívia; o nascimento de uma nova burguesia “aimara” diante da indiferença da elite branca; e o nascimento de uma identidade arquitectónica contemporânea, que incomoda puristas e enche de orgulho os “aimaras”, porém, rejeitada pelas escolas locais de arquitectura. (Nota - Aimara é o nome de um povo, estabelecido desde a era pré-colombiana no sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile).

O livro "Arquitetura andina da Bolívia: a obra de Freddy Mamani Silvestre” foi uma grande conquista. Tal veio validar, perante o establishment cultural de La Paz, a prolífera carreira de Mamani, com mais de 60 projectos numa década, não sendo Freddy Mamani arquitecto. Nascido numa pequena comunidade aimara chamada Catavi, começou a trabalhar como assistente de pedreiro, mas os seus sonhos levaram-no a estudar na Faculdade Tecnológica de Construção Civil, na Universidade Mayor de San Andrés (1986). E, posteriormente, a cursar a carreira de Engenharia Civil na UBI. Tudo isso conseguiu com a sua família a insistir que desistisse...

Paralelamente, na cidade El Alto, que fora receptora, durante décadas, de milhares de indígenas camponeses provenientes de La Paz, Oruro e Potosí, formava-se uma nova burguesia aimara, que se identificou com o ofício de Mamani, por ser um dos seus: um homem sem apreensões académicas, mas empolgado com a ideia de encontrar uma identidade arquitectónica aimara. No fundo, procurou dar identidade à sua cidade, recuperando elementos da cultura original andina da Bolívia.

O seu primeiro trabalho veio de um pedido de Francisco Mamani, um comerciante importador de telemóveis, que "tinha um terreno de 300 m2" e queria construir um imóvel, mas não sabia de que tipo. Eis que Freddy Mamani sugeriu um "edifício elegante, com formas andinas, colorido e com um grande salão de eventos", algo que, até então, não havia na cidade. A partir daquele momento, começou tudo: fachadas convertidas em composições plásticas de molduras de gesso, banhadas com cores complementares: alaranjado/verde e azul/amarelo. Uma paleta cromática agressiva para a arquitectura tradicional, mas irresistível para uma cidade levantada com tijolo sem reboco, numa paisagem altiplana monocromática, fria e seca. Estas novas fachadas desenhadas por Mamani começaram a ser denominadas "transformer", ou depreciativamente "cholas". Surgiu o conceito de "cholets", um jogo de palavras criador de um estilo independente e único, que não deve nada a ninguém, sem referências ou tributos. Entretanto, Mamani afirmava que queria fazer uma arquitectura que falasse a linguagem andina, já que aquilo que era ensinado nas universidades não tinha nada a ver… De facto, algumas formas têm origem na arte dos Andes: Mamani utiliza a cruz andina, a sobreposição diagonal de planos, a duplicidade, a repetição, o círculo e faz disso tudo um tema de estilização.

A composição plástica destas fachadas ofusca as qualidades propostas pelo construtor aimara, cujo principal atractivo são os salões de baile, construídos no segundo nível sobre uma dezena de espaços comerciais desenhados no piso térreo. Isto porque a cultura aimara costuma celebrar os grandes acontecimentos da vida. Para eles, há sempre um motivo para brindar. Por isso, quando as comunidades indígenas emigram para as cidades, encontram nos salões de baile o lugar para manter as suas tradições. Só que, até Freddy, nada havia sido pensado para as actividades da comunidade aimara... Ninguém os tinha pensado e desenhado como ele: espaços amplos, de pé-direito duplo, com bares, mesas para comer e beber cerveja, pistas de dança e palcos para duas ou três bandas poderem tocar ao vivo. Generosos salões em espelhos que reflectem centenas de luzinhas incrustadas nas paredes e tectos, das quais penduram-se lustres vindos da China. As pistas são envoltas por colunas bordadas em detalhes, enquanto robustas curvas coloridas vão tecendo composições nos céus, balaustradas com diferentes tons e requintes. Kitsch, mas ao mesmo tempo, belo e funcional. Nesta ensanduichado projecto, sobre os salões de baile, são desenhados apartamentos para alugar ou para os filhos dos donos. Sobre estes, e coroando o edifício, recai a moradia do dono, de uma forma e desenho que rompe com o resto do edifício: é a casa patronal.

Respeitando a paleta cromática do resto da obra, estas moradias de cobertura com duas águas - com jardim frontal e vista privilegiada sobre a cidade – tornam o edifício como duas prendas totalmente distinta, mas envoltas com o mesmo papel de embrulho. De acordo com a concepção andina, a moradia alta permite estar-se mais próximo do Alaqpacha (mundo superior), por cima do Akapacha (mundo terreno). Entretanto, à diferença do edifício comercial, que ocupa todo o terreno, a casa do dono pode ser menor e autónoma, mas ainda assim aquece com o calor do dia, podendo proteger-se do frio altiplano.

Aos 40 e poucos anos, Freddy Mamani orgulha-se das mais de 60 obras erguidas em El Alto, marcadas pela presença de cores vibrantes e elementos geométricos tomados emprestados da cultura Tiahuanaco, antecedente do Império Inca. "A minha arquitetura transmite identidade, recupera a essência da cultura tihuanacota através da iconografia andina de Tihuanaco e também mescla as cores dos tecidos que existem na parte andina e amazónica da Bolívia", remata Mamani. Da minha parte, termino a dizer: lindo de se ver!





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