Espero que tenham tido saudades… já há algum tempo que nada escrevia, devido às minhas férias tardias. Mas recomeço em grande, com um filme extraordinário - "Joker". Confesso que mantinha alguma curiosidade, pois este filme do realizador norte-americano Todd Phillips mais conhecido pela trilogia de "A Ressaca", vencera o prémio maior da 76.ª edição do festival de cinema de Veneza, não sem antes ter sido ovacionado durante oito minutos, durante a sua apresentação no festival e Joaquin Phoenix ter sido elogiado pelo seu papel, falando-se já em possíveis nomeações para os óscares. A expectativa era grande… Por outro lado, este filme versa sobre uma personagem perversa, contudo, mais enigmática do que o próprio Enigma, outro vilão do universo DC. Quem era e de onde vinha tamanha loucura e psicopatia? O filme parece desvendar-nos estas questões.

"Joker", filme da DC/Warner que estreou em Portugal na passada quinta-feira, 3 de Outubro, é uma obra adulta, para adultos, onde todo o enfoque reside no magnetismo da personagem. Aqui, não há Batman na história, nem há cedências: "Joker" foi mesmo feito para ser levado a sério. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço triste e sem talento. Ele trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, semanalmente, precisa comparecer perante uma agente social, devido aos seus problemas mentais. Ocupado com biscates pouco dignos, Arthur tenta ganhar a vida a fazer rir os outros numa Gotham City sem disposição para isso: a criminalidade é elevada e as pessoas sofrem graves dificuldades económicas. A própria cidade está cheia de lixo, fruto de uma greve prolongada do serviço de recolha. O pobre e solitário homem vive com a sua mãe enferma (Frances Conroy), que o chama de "happy" -- uma pequena ironia relacionada com um problema neurológico que faz com que Arthur ria de forma descontrolada quando se sente melindrado emocionalmente. Tal condição obriga-o a levar consigo um cartão laminado a explicar esta sua doença, e que entrega a desconhecidos sempre que tem um ataque de riso nas alturas mais impróprias. Porém, chega a ser deprimente, pois vemos Arthur a ser vítima na maior parte da história, humilhado e enganado por todos, e que se afunda cada vez mais numa espiral de miséria e comiseração que só lhe resta cometer suicídio ou ripostar, como acaba por fazer, transformando-se no Joker. Embora saibamos de antemão no que a transformação de Arthur Fleck iria constar, não é de espantar o filme seja uma história com final anunciado, o facto é que o guião Phillips consegue oferecer algumas surpresas e descobertas ao longo da descida de Arthur à sua loucura homicida. Após ser demitido da sua função de palhaço, Fleck reage mal à importunação de três homens em pleno metro e acaba por os matar a sangue frio. Os assassinatos acabam por iniciar um movimento popular contra a elite de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é o seu maior representante. E aqui reside a única ligação a Batman – Thomas é pai de Bruce Wayne.


Quando Christopher Nolan se predispôs a fazer "Batman Begins", ele trazia consigo a proposta de uma aventura bem mais sombria, condizente com o clima pesado das ruas de Gotham City. Por mais que tenha sido extremamente bem-sucedido, havia ainda algumas limitações dentro de tal proposta no sentido de manter os filmes do Homem-Morcego dentro de uma classificação acessível a todo público. Em "Joker", Todd Phillips consegue ir mais além e entrega um filme escuro, corajoso e transgressor, tão condizente com a essência da sua personagem-título quanto com a ideia de uma Gotham City caótica, decadente e sem qualquer regra. Neste sentido, é muito interessante como este Joker dialoga com o histórico da personagem, tanto no cinema, como na BD. Sem qualquer referência prévia, trata-se de uma história original que reinventa características básicas da personagem, sem modificá-la ou citar quaisquer dos seus antecessores. Ao mesmo tempo, apropria-se da memória coletiva em relação às versões anteriores, não propriamente no sentido de as comparar, mas antes de saber previamente do que tal personagem é capaz: o Joker é doentio e não vê problema algum em ser extremamente violento, e qualquer espectador está bem ciente disto. Tal consciência traz ao filme um clima de tensão omnipresente, especialmente quando os primeiros indícios da eclosão do Palhaço do Crime começam a vir à tona.

Por outro lado, Todd Phillips também consegue manipular a narrativa de forma que a loucura do Joker, ou melhor, de Arthur Fleck seja não apenas justificável como, numa primeira instância, quase perdoável. Acompanhamos a saga de Arthur em cada seu novo fracasso, assistindo à mudança de uma certa meiguice inicial rumo a um ser cada vez mais duro e decidido, em todas as etapas de uma transformação decorrente muito mais dos vícios da sociedade do que por falhas próprias. E aqui o mérito é todo de Joaquin Phoenix, absolutamente soberbo. Eu diria magistral, mesmo!
Se Phoenix tivesse apenas se sujeitado à transformação física e criado uma risada que provoca calafrios, seja pelo som emitido ou pela conjuntura da sua existência, já seria suficiente para entregar um belo trabalho. Porém, ele vai bem mais longe ao entregar uma variedade imensa de perfis multifacetados que compõem a estranha personagem, provocando espanto e admiração. É como se este Joker fosse uma evolução psicológica das versões anteriores, de Jack Nicholson e Heath Ledger, agora sem qualquer contenção para que possa soltar a sua loucura e violência sem pudores. Enquanto o Joker de "O Cavaleiro das Trevas" é uma encarnação enigmática de puro caos, imprevisível e algo animalesco, Phoenix concretiza todos os aspectos possíveis da personagem, tornando-a mais humana e tridimensional.



Este novo Joker é algo mais patético, desconcertante, impressionante e, ao mesmo tempo, mais elegante, com as suas sequências de dança memoráveis a contrastar com momentos de vergonha alheia. Sem dúvida, o trabalho de Joaquin Phoenix é fantástico até nos mais pequenos detalhes. Como os dedos de unhas roídas até aos dedos manchados de nicotina ou os 23 kg que perdeu para o papel -- todo um method acting que DeNiro dos anos 70 iria aprovar. Phoenix recorreu a alguns dos seus truques físicos para fazer esquecer o trabalho brilhante de Heath Ledger, assim como o "overacting" de Jared Leto em "Suicide Squad", tornando Joker numa personalidade inegavelmente sua, sucedendo com dignidade a Ledger numa tarefa quase impossível. Em relação ao restante elenco, obviamente ofuscado por Phoenix, merece destaque a desenvoltura de Robert De Niro como o apresentador de TV Murray Franklin, assim como Frances Conroy no papel de Penny Fleck, a mãe doente de Arthur.

Paralelamente ao desenvolvimento do assassino psicopata, a luta de classes invade Gotham City de forma absolutamente orgânica, provocando um levante dos oprimidos junto à elite local, cujo exponente maior é... Thomas Wayne. Aqui, o filme também passa pela origem do Batman, mais uma vez dialogando com a memória colectiva, entregando uma versão inédita de uma história já bem batida.



Inspirado, certamente, nos filmes urbanos de Martin Scorsese, em especial "Taxi Driver" com a sua estética de ruas e fotografia suja, "Joker" apresenta ainda uma apurada direcção artística na construção de filme de época dos anos 70, bem como um figurino rigoroso, recorrente às roupas e cores usuais da personagem-título.

Violento e de uma efervescência política vibrante, "Joker" é um novo capítulo na história do Palhaço do Crime que vai ser lembrado por muitos e muitos anos. E, independentemente da sua ligação prévia, trata-se também de um filme brilhante pela forma como foi construído: a partir de um fundo psicológico calcado apenas na vida real, de forma que a sua transformação resulte verossímil não só em Gotham CIty, mas em qualquer cidade nas mesmas condições de desigualdade social.



Não percam "Joker", que embora gire em torno do icónico arqui-inimigo de um super-herói, é uma história fictícia original e independente, nunca antes vista no ecrã grande. A exploração de Arthur Fleck por Phillips, que é indelevelmente retratada por Joaquin Phoenix, é de um homem que luta para encontrar o caminho na sociedade fraturada de Gotham. Um palhaço contratado durante o dia, ele aspira ser um stand up comedy à noite... porém, a piada sempre parece estar nele. Preso numa existência cíclica entre apatia e crueldade, Arthur toma uma péssima decisão que provoca uma reacção em cadeia de eventos crescentes, Vale a pena ver esta aposta num estudo de carácter corajoso.

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