O meu primeiro dia de 2020 começou com a antestreia de “O Caso de Richard Jewell”, o novo filme de Clint Eastwood como realizador que versa sobre uma história real. Claro, se fui vê-lo no dia 1, o filme estreou logo nesta quinta-feira, 2 de Janeiro, em Portugal. Clint Eastwood, o já lendário realizador e actor de 89 anos, junta mais esta bela produção ao seu conceituado currículo. Está já nomeado para um Globo de Ouro e poderá ter alguma hipótese nos Óscares, cujas nomeações só irão ser anunciadas a 13 deste mês. E não é para menos…

Dando eco a um episódio da vida real, o guião de “O Caso de Richard Jewell” foi escrito com base no artigo da revista “Vanity Fair” publicado em 1997 - "American Nightmare: The Ballad of Richard Jewell", escrito por Marie Brenner, bem como no livro de 2019 "The Suspect", de Kent Alexander e Kevin Salwen. Esta é a história e o inferno de Richard Jewell contada pela mão de Clint Eastwood.



Jewell era um segurança que trabalhava nos Jogos Olímpicos de Atlanta, nos EUA, em 1996, quando descobriu uma mala suspeita. Tendo trabalhado como polícia e segurança de um campus universitário, ele logo identificou a mochila abandonada perto do seu posto de trabalho no Centennial Olympic Park. Estava a decorrer um concerto, mas, suspeitando do pior, Jewell, que deu o alerta, e a polícia tentaram evacuar a área. Tal evacuação aconteceu de forma lenta, porque quem assistia ao espetáculo teimava em não arredar pé. Poucos minutos depois, a mochila explodiu. Uma bomba recheada com pregos rebentou, matando duas pessoas e ferindo mais de outras 100. Sem Richard Jewell, a tragédia teria sido, certamente, bem maior. Após o incidente, o segurança teve direito aos seus 15 minutos de fama, com entrevistas na CNN e no famoso programa “Today Show”. Até lhe foi proposto escrever-se um livro sobre a sua história. Mas rapidamente, tudo começou a mudar… As autoridades procuravam desesperadamente por um suspeito e Richard Jewell acabou por ser o alvo escolhido. Foi considerado o principal suspeito na investigação do FBI, graças ao anterior empregador de Jewell, com quem ele se tinha desentendido e que terá deixado implícito aos agentes federais que ele poderia ter sido o culpado, para ficar com o papel de herói. Assim, depois de ter sido aclamado como um herói, tanto no seio das autoridades quanto da imprensa e da opinião pública, Jewell foi falsamente acusado de ter sido ele próprio a colocar a bomba no local. Vários órgãos de comunicação social montaram “acampamento” em frente da casa do segurança, que vivia com a mãe. Tornou-se um caso verdadeiramente mediático.



No processo em tribunal, Jewell contou com a ajuda de um antigo amigo, o advogado Watson Bryant, que tinha sido seu superior há cerca de uma década — quando Jewell fazia gestão de economato num escritório. O advogado, mais especializado no ramo imobiliário, ficando irritado com as acusações injustas das autoridades, tudo fez para auxiliar o amigo, que conhecia o suficiente para saber que não poderia ter sido ele o autor de tamanha tragédia.

Três meses depois, e após uma imagem pública completamente desgraçada, Richard Jewell veio a ser absolvido. Ele e o advogado processaram a NBC e a CNN, entre outros meios de comunicação, em casos que foram resolvidos em acordos fora de tribunal. Porém, o verdadeiro bombista só foi condenado em 2003 — Eric Robert Rudolph estava fugido do FBI há cinco anos e era culpado de outros três bombardeamentos, tendo confessado tudo.



O filme foca-se, sobretudo, em Richard Jewell, um homem bondoso e inocente que fez o seu trabalho de forma exemplar e corajosa ao salvar dezenas de pessoas, e que foi apontado como o principal suspeito do vil acto terrorista. Assim, a abordagem do filme interessa-se mais em edificar o protagonista e em comover-nos, mesmo que isso signifique deixar de lado algumas nuances importantes da real história, como o aspecto político. Contudo, “O Caso Richard Jewell” "acerta na mouche" ao evidenciar a contradição do governo americano ao lidar com o armamento da sociedade civil. No enredo, o Estado da Geórgia, que não só permite como implicitamente incentiva o direito de propriedade a armas de fogo, não hesita em tratar um suspeito como criminoso quando convém, mesmo tratando-se de uma investigação federal. Jewell, segundo o perfil elaborado pelo FBI, teria muito mais hipóteses de ser o culpado do atentado devido à sua preferência por armazenar revólveres e espingardas, mesmo que tudo indicasse que o uso das armas era meramente recreativo. Ou seja, o Estado que defende a necessidade do cidadão americano de se proteger é também o primeiro a acusá-lo numa situação de vulnerabilidade pública. Aqui, Eastwood faz-nos pensar e debater sobre tal permissão de uso de armas de fogo pelos comuns mortais...

“Ainda se trata dos bons a enfrentar os maus”, afirma Jewell num dado momento, ao tentar defender a importância do cargo de segurança que exerce. Com esta frase, Eastwood parece estar a falar da sua própria realização, já que resume “O Caso Richard Jewell” a uma dicotomia do bem contra o mal, não querendo incorrer no uso de acontecimentos dos 90 para criticar o momento actual dos EUA, que tem em Donald Trump o seu maior emblema.



No filme, as cenas do concerto e da explosão da bomba foram mesmo filmadas no parque olímpico de Atlanta, onde o incidente aconteceu. Inicialmente, era suposto ser uma produção dos estúdios Fox, mas quando a Disney comprou a empresa, deixou cair o projecto. Só mais tarde é que a Warner Bros o veio recuperar e trazer-nos esta fabulosa história. Clint Eastwood, ao agarrar no projecto, dá-nos um pouco o mesmo que fez com “Sully”: uma história real, cujos acontecimentos deram um volte face. Dois heróis que depois veriam a ser “crucificados” pelo mesmo sistema que os elevou. De facto, encontramos em ambas as obras um paralelismo que caracteriza a forma como Eastwood aborda estas histórias reais.



Quanto ao elenco, Paul Walter Hauser é a estrela ao interpretar o segurança protagonista. É caso de destaque a excelente interpretação deste actor praticamente desconhecido e que, por essa mesma razão, casa na perfeição com o protótipo do “homem comum” que está na génese de Jewell. Um homem comum a viver coisas fora do comum, uma linha, conforme já referi, partilhada pelos mais recentes filmes de Clint Eastwood. O papel do seu advogado coube a Sam Rockwell e Olivia Wilde interpreta a imparável repórter Kathy Scruggs. Jon Hamm é um dos detectives do FBI responsáveis pela investigação e Kathy Bates faz de Bobi Jewell, mãe de Richard, cujo papel também lhe valeu a nomeação para um Globo de Ouro de Melhor Actriz Secundária.

Não percam “O Caso de Richard Jewell”, pois é caso para dizer que 2020 começou muito bem em termos de cinema.

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