“Bombshell: O Escândalo”

Nestas últimas semanas tenho andado muito ocupado, mas lá consegui ir a duas ante-estreias que prometiam. E não saí desiludido de nenhuma. Em “Bombshell: O Escândalo”, Charlize Theron, Nicole Kidman, Margot Robbie e John Lithgow compõem o elenco de luxo neste filme sobre o caso de assédio sexual que fez tremer o célebre canal de notícias da Fox que “inventou” Trump.

Durante décadas, Roger Ailes, um dos fundadores do canal norte-americano Fox News, teve perfeita noção do poder que exercia sobre todos à sua volta. Desempenhando funções no chamado Quarto Poder, a sua posição como senhor todo-poderoso fê-lo ter boas relações com figuras proeminentes, especialmente ligadas ao Partido Republicano. A sua credibilidade, até então inabalável, é posta em causa quando Gretchen Carlson, ex-apresentadora de um dos mais importantes programas do canal, o acusa de a ter demitido após se ter recusado a ter relações sexuais com ele. Pouco depois, várias mulheres se juntam a Carlson, acusando Ailes de abuso de poder e assédio sexual no local de trabalho. Apesar de Ailes desmentir todas as acusações, é forçado a demitir-se.

A história do escândalo que abalou a Fox News, na pessoa de Roger Ailes, o seu criador, ultimamente tem vindo a conhecer algum eco no campo audiovisual. Depois da série “The Loudest Voice”, no canal HBO, chegou a vez deste filme de Jay Roach ("A Campanha", "Trumbo"), o cineasta que pegou num dos homens mais temidos do universo mediático americano (e que, dizem, ajudou a lançar Trump) para, com o argumento de Charles Randolph, trazer à luz os assédios sexuais que praticava, continuadamente, sobre mulheres sob o seu comando.



O filme centra-se em três jornalistas da Fox News que estiveram no cerne da denúncia pública que levou Aisles (John Lithgow, com uma incrível transformação física) à demissão em Julho de 2016: Gretchen Carlson (Nicole Kidman), Megyn Kelly (Charlize Theron, igualmente quase irreconhecível) e Kayla Pospisil (Margot Robbie). Trata-se de uma história conduzida, sobretudo, pelo lado feminino, mostrando a base de conduta jornalística da Fox News, a marca das mulheres bonitas e das saias curtas como modo de fixar pessoas na estação e, só depois, o caso de assédio sexual que conduziu Aisles ao abandono. Abandono apenas da estação de televisão, pois após tal incidente trabalhou como consultor na campanha que conduziu Donald Trump à Casa Branca.



“Bombshell: O Escândalo” mostra-nos o conflito de forças que fez com que fosse tão difícil oficializar a denúncia contra o então magnata da Fox News, Roger Ailes, uma vez que as visadas, tão fiéis ao discurso conservador do canal, cresceram na Fox ao longo dos anos apesar de toda a estrutura empresarial sexista que elas nunca haviam contestado antes. Estamos diante de figuras centrais na eleição de Donald Trump e de uma denúncia que veio num momento crucial, levando em consideração a influência das fake news no processo. Um filme que documenta bem aquilo que se viveu e que, graças sobretudo ao trio de actrizes, merece uma ida ao cinema.



“1917”

Sam Mendes adentra no abismo da Grande Guerra 1914-1918 e apresenta-nos um empreendimento de cinema que deixa o espectador surpreendido. Aqui, estamos de tal maneira envolvidos na torrente que nos deixamos ir, desfrutando do movimento, como quem embarca numa montanha-russa e não pensa seja em nada. Quem diria que um filme de guerra poderia entreter… Mas é verdade, pois por estranho que possa parecer, realmente pode.

“1917” começa por contar a história de dois soldados, os cabos Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman), que são enviados pelo general Erinmore (Colin Firth), através de uma terra de ninguém recentemente sob ocupação alemã, para entregar uma carta ao coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch), que se encontra a comandar um batalhão em vias de atacar as linhas germânicas em retirada. A carta ordena que o ataque seja cancelado, já que os serviços de informações britânicos verificaram que a aparente retirada alemã era uma cilada estratégica para atrair os soldados inimigos. Assim, se a missiva não for entregue a tempo, 1600 combatentes terão morte certa, entre os quais um irmão de Blake, já que o batalhão de ataque encontrará linhas bem armadas e um poder de fogo imbatível. No longo caminho, Schofield e Blake encontrarão não só um cenário de devastação como o cinema quase nunca mostrou, como também armadilhas deixadas pelos alemães, gente perdida, uma inquietação permanente — em cada colina, em cada ruína, em cada curva do caminho a ceifeira negra da morte pode estar à espera. Tal jornada dura cerca de 24 horas, porém é narrada em duas — e num único plano-sequência. Daí o envolvimento que enunciei.



O entretenimento desempenha um papel fundamental quando se trata de conflitos em larga escala. Não só o audiovisual pode criar apoio às tropas e sentimento de patriotismo, como também vem moldar gerações futuras no sentido de entenderem o contexto histórico. A Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnam são bons exemplos disso, com uma miríade de obras que vão desde a parte bélica aos estudos sobre o impacto da violência nos soldados. Curiosamente, a Primeira Guerra Mundial nunca veio a ser tão explorada quantos as restantes. De facto, filmes como este “1971” indicado ao Oscar ajudam a relembrar como não é um período amplamente entendido como de suma importância. A Grande Guerra foi uma divisora de águas, e redefiniu tanto alianças políticas quanto formas de combate, algumas usadas até hoje. Em 1914, quando um nacionalista sérvio assassinou Francisco Ferdinando, o herdeiro do trono Austro-Húngaro, até ao seu término, em Novembro de 1918, o conflito ceifou cerca de 20 milhões de vidas e deixou um número idêntico de feridos, já para não falar dos muitos afectados por perderem os seus entes. O confronto iniciou-se entre as chamadas Tríplice Aliança (Alemanha, Itália, Império Austro-Húngaro) e a Tríplice Entente (Reino Unido, França e Império Russo), e terminou com a Europa devastada, e os Estados Unidos e Rússia consagrados como novas potências mundiais.

Porém, o foco de Sam Mendes versa sobre contar uma história sobre o homem e não a respeito da guerra em si. Com tal abordagem, “1917” faz-nos reflectir sobre o que pode levar a personagem mais adiante: a vontade de regressa a casa ou o sentido de responsabilidade para com a sua pátria. E, dessa forma, o realizador transforma o seu filme numa jornada repleta de emoção, e de altos e baixos. É, como já referi, uma experiência imersiva e muito intensa – e o facto de Mendes ter estabelecido uma narrativa no formato de um falso plano-sequência é o que amplia as sensações que o público vai recebendo sem qualquer resistência.



Deste modo, “1917” transcende o género "filme de guerra" para atingir um valor humanitário e altruísta dentro da sua linguagem cinematográfica. Os seus dois protagonistas (com a atenção mais voltada para Schofield) são bastante verossímeis e garantem a nossa atenção, não só por serem dois jovens adultos no meio de uma batalha desoladora, mas também por serem jovens inseridos brutalmente numa experiência muito particular e brutal: eles estão a descobrir um novo mundo, vão-se conhecendo melhor perante as acções enquanto soldados e indivíduos, mas também embarcam num terreno sinuoso e incerto, que lhes exige muito mais (em certas ocasiões, em questão de segundos) do que cada um pode assimilar. Vamos acompanhando toda a história através dos seus olhos e inocência, mas tudo o que os dois jovens adultos sentem é elevado a máxima potência por nós, espectadores. A câmara que os segue pelas costas em locais abandonados é a mesma que regista momentos de tensão em silêncio ou de um leve respiro entre uma surpresa e outra. Tanto o realizador como o diretor de fotografia vão alimentando a história com elementos que nos fazem ver resquícios de esperança, mas que também nos fazem sentir a dor da guerra como ela é. Cavalos e soldados mortos que servem de escudo ou esconderijo contrastam com a beleza das folhas de uma cerejeira no rio. São essas nuances que permeiam a obra e lhe dão equilíbrio, e é exatamente isso que a distancia de outros filmes épicos de guerra como “O Resgate do Soldado Ryan” ou “Apocalipse Now”; no entanto, aproxima-se de filmes como “Platoon” e “Sniper Americano”, pois tais narrativas também ganham traços dedicados a expor o que a guerra faz com o homem enquanto indivíduo, centram-se mais nos problemas de uma personagem, e não apenas como as guerras são capazes de movimentar o mundo.

Para além de ser uma grande experiência cinematográfica, “1917” também resulta numa prova de humanidade – e de como cada pequeno passo, seja numa caminhada ou numa corrida desenfreada, tem importância.

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