Há personagens de banda desenhada que se tornaram imortais, e esta é, sem dúvida, uma delas. A eterna contestatária criada por Quino na Argentina teve, na realidade, uma curta vida de apenas dez anos. Porém, hoje continua viva como nunca. 60 anos depois, Mafalda continua a perguntar-se porque permanecemos silenciosos e inertes, porque ainda fazemos tão pouco. Sempre atual e necessária, a menina continua activa e vigente seis décadas após a publicação da sua primeira tira, no semanário argentino "Primera Plana".

Persistente e questionadora, com o seu cabelo desalinhado, enfeitado com laço em forma de borboleta e vestido vermelho, Mafalda permanece viva seis décadas após a sua criação. Apesar de o seu autor, Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, ter desenhado a personagem por apenas uma década (de 1964 a 1973), a menina continuou a deambular entre as nuances da História e, sobretudo, as lutas dos povos. Os seus questionamentos abordavam temas como guerra, injustiças, direitos humanos e democracia, sempre com muita ironia e humor sarcástico. Foi assim que conquistou fãs em todo o mundo. Sem hesitações, esteve presente em diferentes contextos de autoritarismo – alguns extremamente violentos, outros ainda mais, pois afinal todo autoritarismo o é – fazendo uso de metáforas como sopas e cassetetes para mostrar a importância de fazer perguntas, mesmo quando perguntar podia ser perigoso.

 


 

Schulz, com o seu Charlie Brown, já tinha introduzido a ideia de que as tiras de banda desenhada humorísticas tinham a "obrigação" de fazer rir. A introspecção já interessava os leitores desse género na altura. Se “fazer pensar” não era algo novo, talvez o “incomodar”, o “provocar”, o “tirar as pessoas da zona de conforto” e o “colocar o dedo na ferida” que Quino trouxe com Mafalda fossem as suas grandes inovações. Aliás, as bandas desenhadas argentinas têm muitas referências a estas crónicas do quotidiano, como exemplifica Oesterheld com o seu Eternauta (obra de ficção científica escrita pelo autor argentino Héctor Germán Oesterheld, com arte de Francisco Solano López, publicada inicialmente entre 1957 e 1959 na revista “Hora Cero Semanal”. Em 1969, Oesterheld lançou um remake com arte de Alberto Breccia, e em 1976 uma sequência com Solano López. Estas versões tinham um tom mais político, refletindo o contexto do golpe militar na Argentina. Nessa época, Oesterheld juntou-se ao grupo guerrilheiro Montoneros, tendo desaparecido em 1977, enquanto terminava o guião da continuação de “O Eternauta”).

 

 

Voltando a Mafalda, ela foi inicialmente criada para ser a imagem de uma campanha publicitária de uma máquina de lavar da marca Mansfield, que fora cancelada pelos executivos. Não tendo sido utilizada como símbolo de consumo, encaixou-se perfeitamente como símbolo de questionamento aos padrões capitalistas burgueses e ao status quo dominante da sua época (e dos tempos que se seguiram).

 

Erguendo-se da Argentina, a "voz" de uma menina de seis anos tornou-se uma improvável anti-heroína mundial com as suas falas ingenuamente ácidas e profundamente inconformistas. Sob a aparência de uma infância inocente, tocou em temas sociais sensíveis, fez críticas certeiras à geopolítica, apontou preocupações sociais urgentes e questionou os adultos que, do lado de fora das tiras, permaneciam em silêncio. Curiosamente, até hoje continua a fazer-nos as mesmas perguntas.

 

 

Quino deixou de publicar Mafalda após uma década de tiras diárias. Afirmava que havia um sério risco de se repetir. Hoje podemos compreender essa decisão. Os ciclos históricos provaram-se desconfortavelmente circulares, inclusive nos seus erros, violações e violências. Embora a publicação regular de Mafalda tenha terminado há mais de 50 anos, em junho de 1973, Quino ainda desenhou a personagem em algumas ocasiões especiais. E Mafalda não parou. Apropriada pelo povo, continuou nas ruas, ganhando novos significados. Tornou-se um ícone feminista, associou-se a várias causas progressistas e emprestou o seu inconformismo a diversas lutas contra-hegemónicas em todo o mundo.

 


 

 

Quino foi uma vez questionado sobre como seria o futuro de Mafalda se ela tivesse crescido e se teria realizado o sonho de ser intérprete da ONU para ajudar a mediar conflitos e alcançar a paz mundial. O autor respondeu que, se Mafalda tivesse crescido, provavelmente estaria entre as vítimas desaparecidas das ditaduras argentinas. Esta sua resposta, dura na sua essência, sublinha a importância de a pequena e incómoda menina continuar a estar presente, rebelde como sempre, para além dos contratos editoriais e do tempo do seu criador (que nos deixou em 2020), desafiando as nossas conveniências e zonas de conforto. As tiras de Mafalda foram traduzidas para mais de 30 idiomas e os seus livros venderam mais de 20 milhões de exemplares só na Argentina.

 

Mafalda prossegue connosco, a emitir novos olhares sobre este tempo cinzento no qual convivemos, a aprendermos com o passado para termos o direito de sonhar com um futuro melhor. Ao respeito, Paul Ricoeur, um dos grandes filósofos e pensadores franceses do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, ensinou-nos, de forma pertinente: “nem sempre a linha que divide história e ficção é evidente. Trata-se, em muitos momentos, de um alinhavo composto por duas linhas, compondo pontos que se sobrepõem, onde um campo permeia o outro”.

 


 

Neste seu sexagenário, há várias formas de celebrar Mafalda por cá. "Toda a Mafalda" é uma "edição completa que reúne todos os desenhos e tiras que Quino, o seu brilhante criador, fez da sua personagem mais querida. Com prefácio de Umberto Eco, que considera a Mafalda 'a heroína do nosso tempo', esta edição inclui uma contextualização histórica das tiras, homenagens de personalidades internacionais e portuguesas do mundo das artes e do espetáculo, entre outros materiais inéditos, que nos mostram que, após sessenta anos, as observações ousadas e perspicazes da Mafalda continuam tão pertinentes como nunca", lê-se na sinopse desta obra reeditada. O livro conta ainda com diversa informação que ajuda a contextualizar a personagem e os acontecimentos históricos da época.

 

Para quem não se quiser as tiras completas, tem sempre a hipótese do livro "O Indispensável da Mafalda". E mais: há uma opção para crianças — "Mafalda para miúdos" — e outra para quem se quiser centrar apenas no feminismo — "Mafalda: Feminino Singular".

 

Além disso, as comemorações vão continuar no festival Amadora BD que, entre 17 e 27 de outubro, apresenta uma exposição dedicada a Mafalda, onde vai ser possível entrar no universo no qual a personagem vive, pensa, protesta e se revolta – e que, apesar do tempo passado, permanece atual.

 

 


 

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