Estávamos em 20 de junho de 1975 quando, sem se prever o que estava para acontecer, estreava nos cinemas americanos um filme que, vindo das profundezas de um modesto orçamento e de uma produção atribulada, viria a mudar para sempre a forma como se faz, e se vê, cinema. Chama-se “Jaws”, mas por cá ficou eternizado como “Tubarão”. E, cinquenta anos depois, continua a causar arrepios, não só pelo terror quase primitivo que invoca, mas pelo impacto que teve (e ainda tem) na cultura popular, na indústria do entretenimento e até na forma como olhamos o mar.
![]() |
Steven Spielgerg em 1974 |
Steven Spielberg, então um jovem realizador de 27 anos, assumiu este projeto baseado num romance de Peter Benchley. Ninguém esperava que viesse dali um fenómeno. O tubarão mecânico, batizado “Bruce”, avariava constantemente, obrigando Spielberg a fazer precisamente aquilo que viria a definir o filme: mostrar pouco, sugerir muito. O “monstro” quase nunca aparece… e talvez por isso nos fique cravado na imaginação. A música de John Williams, hoje tão icónica quanto o próprio filme, tornou-se o verdadeiro predador invisível, fazendo-nos temer cada movimento na água. É quase impossível ouvir aquelas duas notas sem sentir um frio na espinha, verdade?
O sucesso foi imediato e colossal. Arrecadou mais de 470 milhões de dólares em todo o mundo e foi, durante dois anos, o filme mais rentável da história, apenas superado por ”Star Wars”. Mas “Tubarão” foi mais do que um êxito de bilheteira. Inventou, literalmente, o conceito de blockbuster de verão, um termo que nem existia antes. Foi o primeiro a ter um lançamento simultâneo em centenas de salas e a explorar uma estratégia de marketing massivo para a época. E assim nasceu o modelo que os estúdios ainda hoje replicam: verão, grande ecrã, suspense, pipocas.
Porém, este clássico não se esgota nas bilheteiras. O seu impacto cultural foi profundo. Criou um medo coletivo da água que atravessou gerações e que, infelizmente, também alimentou mitos e preconceitos sobre os tubarões, criaturas muito menos perigosas do que a ficção nos quis fazer crer. Curiosamente, o próprio autor do livro original, Peter Benchley, viria mais tarde a arrepender-se de ter contribuído para essa visão distorcida. Tornou-se ativista pela conservação dos oceanos e dos tubarões, numa tentativa de equilibrar o legado da sua obra.
Nas décadas que se seguiram, Hollywood tentou inúmeras vezes replicar a fórmula — com sequelas oficiais (“Jaws 2”, “3D”, “The Revenge”), mas também com uma infinidade de imitadores: de “Deep Blue Sea” a “The Meg”, passando por aberrações propositadamente camp como “Sharknado”. Nenhum conseguiu o equilíbrio entre suspense, subtileza e terror psicológico que Spielberg alcançou. “Tubarão” tornou-se, assim, aquele tipo de obra inimitável: todos a querem revisitar, mas ninguém a consegue igualar.
No entanto, por trás do terror inicial, esteve uma protagonista inesperada: Susan Backlinie, que interpreta Chrissie Watkins, a jovem nadadora atacada na fantástica e mítica cena de abertura. Tendo sido contratada pela sua experiência como nadadora e stuntwoman, levou três dias a filmar um dos momentos mais icónicos de sempre, rebocado por cabos nos bastidores e submetida a um frio brutal. Falecida em maio de 2024, aos 77 anos, Backlinie foi recordada como uma figura essencial para o impacto emocional do filme e o seu desmaio involuntário, devido ao frio ,quase se tornou parte da curiosa história desta produção. Uma lembrança de que, por trás do monstro, havia coragem e autenticidade humanas que nos continuam a marcar.
É que, sejamos honestos: o filme exagera. E muito. A começar pelo próprio tubarão. A criatura retratada no ecrã é apresentada como um predador implacável, quase inteligente, com oito metros de comprimento, muito acima da média do tubarão-branco, que raramente ultrapassa os cinco metros. Além disso, o comportamento do animal no filme, o de atacar deliberadamente humanos, perseguir embarcações e agir com uma espécie de rancor calculado, está longe da realidade científica. Na verdade, ataques de tubarão a pessoas são raríssimos, e quando acontecem, muitas vezes trata-se de confusões (o tubarão, ao contrário do que o cinema nos ensinou, não nos vê como uma iguaria, mas como um erro de avaliação). Este retrato inflacionado alimentou décadas de medo injustificado, levando mesmo à caça desenfreada da espécie e a uma quebra considerável na sua população. Ou seja, a criatura que no filme encarna o mal absoluto, na realidade, tornou-se vítima da ficção.
Cientificamente, quase tudo no filme é escessivo. Mas isso pouco importa quando falamos de cinema. O que interessa é a experiência e “Tubarão” ofereceu, e ainda oferece, uma experiência cinematográfica ímpar. Há algo de quase ritual no modo como o vemos hoje: um regresso à origem do medo, mas também à essência da boa realização. O herói relutante, o velho lobo-do-mar, o jovem cientista: três arquétipos numa ilha cercada por um mal invisível. Uma fábula moderna contada com uma mestria que nem o tempo conseguiu engolir.
![]() |
Poster do filme original de 1975 |
Agora, em 2025, celebra-se o cinquentenário do filme com reedições, exibições especiais e um novo documentário: “JAWS @ 50”, que promete mergulhar nos bastidores e na herança que este filme deixou. É também um momento para olhar para trás e perceber como um mero filme de verão se tornou parte do nosso ADN cultural. Está nos memes, nas séries, nos desenhos animados, nos pesadelos de infância e até na forma como pensamos duas vezes antes de entrar no mar.
“Tubarão” não é só um clássico. É um fenómeno que ultrapassou o ecrã. Meio século depois, ainda nada se lhe compara. E a sua sombra continua ali, à espera, logo abaixo da superfície. Hoje, mais do que nunca, faz sentido olhar para “Tubarão” não só como um marco do cinema, mas também como um alerta para o poder das histórias que contamos e para as suas consequências. Durante décadas, os tubarões foram perseguidos, caçados e incompreendidos, tudo por causa de uma narrativa que os transformou em vilões absolutos. Felizmente, nos últimos anos tem havido um esforço crescente para repor a verdade e defender a importância destes animais nos ecossistemas marinhos. Que este cinquentenário sirva também para isso: para celebrarmos o cinema, sim, mas também para reaprendermos a respeitar o mar, as suas criaturas e o delicado equilíbrio da natureza. Porque o verdadeiro monstro nunca foi o tubarão. Foi sempre o medo mal explicado.