Sou da geração que assistiu à chegada da Internet, dos primeiros telemóveis, verdadeiros "tijolos", e que ainda se lembra do som de um fax. E, no entanto, aqui estou eu, em 2025, a perder um "duelo" com… estores automáticos.
Esta é uma reflexão pessoal sobre o (des)encanto da domótica, o declínio cognitivo e a ilusão do conforto total. Isto porque rendi-me. A uma ideia, a um comando e a um par de estores. Não pelo sol, embora ele tenha desempenhado um papel de destaque, nem pela tecnologia em si. Fui vencido por mim próprio, pela ilusão de que o futuro nos traria mais controlo, mais eficiência e, claro, mais estilo. A decisão pareceu inofensiva: a substituição de estores manuais por uma versão elétrica, inteligente, controlo remoto e promessas de conforto absoluto. Um upgrade doméstico. Uma afirmação estética. Um pequeno passo para mim, um grande passo para a ficção científica aplicada ao lar.
Mas rapidamente percebi que havia um problema. Quando o comando morreu, e os estores recusaram-se a obedecer, não houve botão de emergência, nem plano B. O espaço ficou refém de uma luz agressiva que entrava descaradamente. E eu? Fiquei a olhar para a parede, a tentar lembrar-me das instruções que ignorei no dia da instalação. O Google não me salvou e o bom-senso também não. Na verdade, foi ali, nesse desconforto solar inesperado, que se me acendeu outra luz: a da reflexão. Será que estamos a ficar demasiado dependentes de sistemas que nos retiram a autonomia sob o pretexto de nos facilitar a vida? Será que uma casa “inteligente” nos torna, na prática, um pouco menos... espertos?
Isto não é apenas intuição. A ciência confirma: estamos a perder capacidades cognitivas. Um artigo recente do Financial Times revela que, desde 2012, os níveis de literacia, raciocínio matemático e resolução de problemas entre jovens, e também adultos, têm vindo a decrescer. A OCDE confirma que o pico de desempenho nas competências básicas ocorreu há mais de uma década. Adicionalmente, estudos longitudinais como o Monitoring the Future apontam para uma crescente dificuldade de concentração e pensamento crítico, sobretudo a partir da explosão do digital e do consumo intensivo de conteúdos rápidos e fragmentados. Estes estudos, por exemplo, indicam que os jovens, e nós também, temos cada vez mais dificuldade em manter a atenção. Um fenómeno diretamente associado ao excesso de estímulos, ao scroll infinito e à passividade tecnológica. E se, por um lado, ganhamos tempo e conforto, por outro perdemos agilidade, leitura profunda e, pior ainda, autonomia.
Casa inteligente, cérebro distraído
E enquanto os nossos cérebros ficam mais dispersos, as nossas casas ficam mais “inteligentes”: termóstatos que aprendem os nossos hábitos, luzes que reagem ao movimento, colunas que sentem o nosso humor. Tudo parece funcionar, até deixar de funcionar. E quando isso acontece, muitos de nós já não sabemos o que fazer. Perdemos o controlo literal e simbólico. Já não abrimos janelas. Já não puxamos estores. Já não lemos um livro até ao fim...
A tecnologia oferece, sim, vantagens inegáveis: eficiência energética, segurança reforçada, acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida. É uma revolução arquitetónica e social que entendo e até admiro. Mas a linha entre eficiência e dependência está cada vez mais ténue. E, como em tudo, quando o equilíbrio se perde, instala-se o despropósito.
A verdade é que o conceito de “casa inteligente” fascina-me, e até partilho algum do otimismo dos arquitetos que veem nestes sistemas o futuro da habitação urbana. Mas, talvez por isso mesmo, valha a pena lembrar que uma casa funcional não tem de nos substituir, apenas servir-nos. A verdade é que tenho receio de viver numa casa que pense por mim. Gosto da ideia de automação, mas não quero que ela me substitua. Quero viver numa casa que me sirva, não que me vigie. Que me facilite a vida, não que me infantilize. Que me acompanhe, sem me roubar o instinto.
É por isso que, nos últimos tempos, tenho feito pequenos regressos ao essencial: mais papel, menos ecrãs. Mais movimento, menos comando. Mais silêncio, menos assistentes de voz que “sempre estão a ouvir”. Porque entre uma casa que sabe tudo sobre mim e um cérebro que se vai esquecendo de pensar, escolho continuar a pensar. Nem que seja às cegas, mas com estores manuais e plena consciência.
E se dúvidas houvesse, o recente apagão global em Portugal e Espanha deixou tudo ainda mais claro, ou melhor, escuro. Um simples colapso foi suficiente para paralisar aeroportos, hospitais, transportes, empresas e até cafés de bairro. Num instante, vimos como tudo, absolutamente tudo, depende de um sistema invisível que damos por garantido. A tecnologia, que prometia autonomia e fluidez, mostrou-se frágil e, ironicamente, ficámos num impasse. Não sabíamos onde ir, como pagar, o que fazer. E nesse vazio digital, percebemos que, mais do que utilizadores, somos reféns de um sistema demasiado inteligente... para ser confiável. Talvez o essencial no futuro não seja termos uma casa conectada, mas termos a liberdade de desligá-la e, ainda assim, sabermos viver.