Há histórias que me deixam sempre maravilhado pela forma improvável como o mundo decide funcionar. A do Guia Michelin é uma delas, e talvez a mais improvável de todas. É delicioso pensar que aquilo que hoje decide carreiras, transforma cidades e mexe com o ego de chefs no mundo inteiro nasceu de uma inquietação muito simples: ninguém conduzia. E, se ninguém conduzia, ninguém gastava pneus.

 

No ano de 1900, havia menos de três mil automóveis em toda a França. A Michelin, que hoje associamos a inovação e estrada, enfrentava um problema quase cómico: como vender algo que ninguém tinha necessidade de substituir? Como lembra um artigo recente da Vogue, os irmãos André e Édouard Michelin perceberam que era preciso “galvanizar os motoristas a desenvolverem as suas viagens e, assim, aumentar as vendas de pneus”. Em vez de esperar que o mercado crescesse sozinho, decidiram criá-lo.

 


O imprevisto que mudou tudo

 

E assim nasceu um pequeno guia vermelho oferecido gratuitamente, pensado para ajudar motoristas a aventurarem-se pelo país. Trazia mapas, oficinas, dicas práticas e, quase como um gesto secundário, sugestões de restaurantes. O objectivo era tão pragmático quanto engenhoso: fazer as pessoas viajar. Quanto mais quilómetros, mais desgaste; quanto mais desgaste, mais pneus; e quanto mais pneus, mais Michelin.

 

Acontece que o que mais cativou os leitores não foram as oficinas nem os postos de combustível. Foram os restaurantes. Era naquela pequena secção que as pessoas dobravam páginas, deixavam notas, faziam debates e procuravam inspiração para uma escapadinha. Era ali, sem os irmãos Michelin se aperceberem, que viria a nascer um novo mundo.

 

 

O nascimento das estrelas

 

Com o passar do tempo, a Michelin percebeu que a gastronomia era mais do que um mero complemento. Em 1926, introduziu as primeiras estrelas. A ideia não tinha nada de glamoroso: era uma simples orientação para viajantes. Uma estrela, valia a paragem; duas, justificava o desvio; três, merecia a viagem inteira. Ainda hoje acho genial a subtileza deste raciocínio: cada estrela era, na verdade, um convite à estrada, um incentivo directo ao consumo do próprio produto da marca.

 

A partir daí, o Guia Michelin deixou de ser apenas um serviço ao viajante para se transformar numa instituição cultural. A Vogue resume isso de forma perfeita ao dizer que “a palavra do guia é evangelho e as suas estrelas as distinções mais cobiçadas da restauração”. E é impossível negar. Um restaurante que recebe uma estrela muda de vida. Dois, eleva-se. Três, entra na eternidade. E a pressão, essa, é tão intensa quanto o brilho.

 

 

Também gosto da anedota que marcou o momento em que o guia deixou de ser gratuito. André Michelin visitou um dia uma oficina e encontrou exemplares a serem usados como calço para uma mesa. Indignado, disse a frase que mudaria tudo: “o homem só respeita aquilo por que paga”. No ano seguinte, o guia tornou-se pago e o respeito apareceu com ele. O que antes era um folheto prático transformou-se num símbolo de autoridade.

 

Com o tempo, o Guia Michelin criou carreiras, fortaleceu destinos, aumentou o turismo gastronómico e também colocou uma pressão enorme sobre quem vive entre tachos e panelas. Surgiram lendas, episódios de glória e até alguns de renúncia: chefs que devolveram estrelas para recuperarem a liberdade. E, no meio disto tudo, nasceram também os inspetores Michelin, figuras quase míticas que avaliam anonimamente, pagam as próprias refeições e vivem em sigilo. São os agentes secretos da gastronomia, silenciosos e invisíveis, mas determinantes.

 


A explosão global

 

Hoje, o Guia Michelin está presente em dezenas de países, adapta-se, expande-se, inclui street food, celebra sustentabilidade através das estrelas verdes e continua a reescrever a geografia da gastronomia. Onde chega, transforma. Onde atribui estrelas, ilumina. Onde passa, deixa, sem dúvida, um rasto de expectativa.

 

E, ainda assim, não consigo deixar de pensar na ironia original. Porque tudo, absolutamente tudo, começou com uma tentativa de vender pneus. Não é incrível? Um truque de marketing tornou-se a bíblia da gastronomia. Uma necessidade comercial deu origem a um dos maiores símbolos de excelência que existem. Da borracha ao ritual, da estrada ao prato, do pragmatismo ao prestígio.

 

É por isso que esta história me fascina tanto. Lembra-nos que as ideias têm caminhos próprios, muitas vezes mais ambiciosos do que imaginamos. E que a criatividade, especialmente quando nasce de um problema, pode transformar o mundo de forma inesperada.

 

 

Hoje, sempre que entro num restaurante estrelado, penso que estou, de certa forma, a participar na mesma história que começou há mais de um século, com um livrinho vermelho nas mãos de dois irmãos visionários que queriam apenas que conduzíssemos mais. E conduzir, sobretudo quando nos leva a uma boa mesa, continua a ser uma das grandes delícias da vida.

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