O ano de 2025 marca mais uma volta de reciclagem criativa para Madonna. Longe de entregar apenas nostalgia, a “Rainha da Pop” oferece-nos releituras conceituais, arquivos redescobertos e uma nova perspetiva sobre fases decisivas da sua carreira. Três lançamentos: “Veronica Electronica”, “Confessions on a Dance Floor (Twenty Years Edition)” e, mais recentemente, “Bedtime Stories: The Untold Chapter”, reavivaram o ano com elegância e consistência, convidando fãs novos e antigos, como eu, a revisitar (ou descobrir) camadas menos exploradas da discografia da artista.


Veronica Electronica — o nascimento tardio de um alter ego

 

“Veronica Electronica” nasceu no fim dos anos 90, como um projeto complementar ao álbum “Ray of Light” (1998), mas foi engavetado na altura. Em 2025, esse mistério finalmente vê a luz do dia. O álbum de remixes, lançado a 25 de julho, reúne versões raras e inéditas de faixas da era “Ray of Light*”, feitas por produtores como William Orbit, Peter Rauhofer, Sasha, BT e Victor Calderone, e inclui também a versão oficial de “Gone Gone Gone”, uma demo esquecida de 1997.

 

Para quem, como eu, viveu a explosão espiritual e eletrónica de “Ray of Light”, este álbum é quase um documento arqueológico da alquimia sonora de Madonna: beats eletrónicos, ambiências dream-pop / trip-hop, e uma voz distante, etérea, a emergir de um espaço sonoro de transição e reinvenção. “Veronica Electronica” não é um mero exercício de nostalgia, mas uma reinterpretação madura de uma era fundamental.

 


 

Confessions on a Dance Floor — duas décadas depois, a pista continua viva

 

Em 2025, celebra-se o 20.º aniversário de “Confessions on a Dance Floor”, um dos discos mais emblemáticos de Madonna e da pop/dance contemporânea. A edição comemorativa, “Twenty Years Edition”, relembra por que motivo este álbum se tornou um marco: um convite irresistível à pista de dança, com batidas pulsantes, energia contagiante e uma renovada vitalidade pop.

 

Para os fãs (como eu) que dançaram com “Hung Up”, “Sorry” ou “Jump”, esta edição funciona como cápsula do tempo e, ao mesmo tempo, como prova de que a música de Madonna continua a ressoar no presente. Mais do que reviver, é reafirmar: Madonna não é apenas legado, é atualidade.



Bedtime Stories: The Untold Chapter — segredos revelados e intimidade restaurada

 

Talvez a mais surpreendente das novidades de 2025 seja o EP “Bedtime Stories: The Untold Chapter”, lançado em 28 de novembro para assinalar os 30 anos de “Bedtime Stories” (1994). Mas este não é um simples relançamento: trata-se de “um novo capítulo”, com demos inéditas, versões alternativas e raridades que documentam o processo criativo da época, muitas delas arquivadas pela gravadora até agora.

 

Produzido com o contributo de Stuart Price, já associado ao trabalho dance de Madonna em “Confessions”, este EP oferece uma visão mais íntima, quase crua, de uma fase em que Madonna se afastava da polémica de “Erotica” para mergulhar numa sonoridade mais suave, R&B-influenciada, mas ainda carregada de estilo e emoção. A arte da capa recupera fotografias inéditas de 1994, reforçando a ideia de redescoberta e celebração de um passado que parecia esquecido.

 

Para os que sempre defenderam “Bedtime Stories” como um dos discos mais subestimados da artista, “The Untold Chapter” é um presente e um convite a revisitar essa Madonna sensível, vulnerável, criativa.

 


 

Por que 2025 é um ano especial na discografia de Madonna

 

2025 não foi apenas um ano de relançamentos; foi também um ano de pistas, sinais e promessas. A recuperação de três capítulos fundamentais da carreira de Madonna coincidiu com uma energia criativa renovada e com o anúncio, ainda nas entrelinhas, de um novo ciclo no horizonte.

 

Há mais de um ano que Madonna está em estúdio com Stuart Price, o arquitecto sonoro de “Confessions on a Dance Floor” e um dos produtores que melhor compreende o ADN rítmico e melódico da cantora. A parceria, confirmada por ambos ao longo de 2024 e 2025, deu origem à notícia que incendiou a fandom: Madonna prepara para 2026 um álbum novo, descrito informalmente como uma “espécie de Confessions on a Dance Floor – Part II”.

 

Não se trata de regressar ao passado, Madonna nunca funcionou assim, mas de revisitar a pista de dança com novas ferramentas, novas histórias e um novo corpo emocional. É a celebração da luz, do trabalho, do hedonismo e da reinvenção permanente, aquilo que sempre fez parte da sua linguagem artística.

 

Por isso 2025 tem sido tão simbólico: enquanto celebramos as eras que moldaram a música pop, pressentimos também o renascimento de uma Madonna futurista, energética, novamente pronta para incendiar pistas e redefinir géneros. O passado foi polido, restaurado e devolvido, mas o futuro já está a vibrar no subsolo das novas sessões de estúdio.

 

Para mim, enquanto fã confesso, 2025 revelou-se um ano de redescobertas apaixonantes. “Veronica Electronica” trouxe de volta a magia eletrónica dos anos 90 com nova urgência. A edição de “Confessions on a Dance Floor” provou que a pista de dança ainda pulsa. E “The Untold Chapter” devolveu a intimidade, o mistério e a criatividade de uma Madonna corajosa, a mesma que transformou baladas em hinos e dance-floors em santuários pop. E embora qualquer novo lançamento da Madonna seja sempre motivo de entusiasmo, é impossível não sentir que estamos a viver um momento de inflexão: um ano que honra os alicerces e prepara a explosão criativa que aí vem.

 


Madonna e a pista de dança: como a Rainha da Pop moldou o futuro da música eletrónica

 

E tudo isto leva-me também a esta reflexão. Há artistas que seguem tendências, outros que as reinterpretam, e depois há Madonna, que as dobra, torce e transforma em algo absolutamente seu. Quem me lê aqui no Liberio's Leisures sabe que sempre fui fã, desde adolescente, do seu universo mutável, eletrificado e, tantas vezes, provocador. Por isso, quando me deparei com o artigo da Billboard sobre as sete formas como Madonna mudou a música dance, senti que era o momento perfeito para refletir sobre o impacto colossal que ela teve (e continua a ter) na cultura de pista de dança e, claro, partilhar convosco.

 

Porque sim, falamos da artista pop mais influente de sempre… mas também de uma das arquitetas invisíveis da música eletrónica tal como a conhecemos hoje.

 

A reinvenção que nos puxou para a pista

 

Ao longo dos anos, Madonna fez muito mais do que lançar êxitos: redefiniu a estética e o som da pop, incorporando elementos de house, techno, disco revivalista, trance e até influências orientais, místicas e espirituais.

 

Quando "Ray of Light" (1998) explodiu, lembro-me perfeitamente da sensação de ouvir algo novo. Não era só pop. Era um mergulho eletrónico, quase transcendental, com William Orbit a orquestrar uma nova Madonna, luminosa, etérea e futurista. Para mim, foi ali que ela deixou claro que não tinha medo de romper fronteiras. O álbum foi praticamente um convite para abrirmos a mente e deixarmo-nos levar por uma nova linguagem da pista de dança.

 

A madrinha dos remixes (e de quem vive da noite)

 

A Billboard sublinha o que qualquer pessoa que goste verdadeiramente de música de dança sabe: Madonna abriu portas. Antes dela, os remixes eram um apêndice curioso; com ela, tornaram-se peças de culto.

 

Quantas noites de Lisboa, Barcelona ou Nova Iorque não foram embaladas por versões club de “Erotica”, “Deeper and Deeper”, “Vogue” ou “Nothing Really Matters”?

E, sejamos honestos, quem nunca se perdeu no remix de “Hung Up” que atira ABBA diretamente para o futuro?

 

A colaboração com produtores como Shep Pettibone, Stuart Price ou Orbit ajudou a legitimar a relação entre o mainstream e o underground. E, de certa forma, democratizou a pista de dança: Madonna trouxe a cultura clubbing para o centro da pop e, com ela, trouxe também liberdade, hedonismo, expressão de género, sexualidade e identidade.

 

Para muita gente (eu incluído), a pista de dança tornou-se um lugar onde se podia ser sem pedir licença. Madonna entendeu isso muito antes do mundo.

 

A pop eletrónica como luxo sensorial

 

Se lermos esta evolução sob uma lente mais contemporânea, essa mesma que me acompanha nos artigos de lifestyle de luxo, percebemos que Madonna criou um universo imersivo antes de isso ser “experiência premium”.

 

As tours transformaram-se em espetáculos de luz, projeção, neons, LED e energia cinética. O álbum “Confessions on a Dance Floor” (2005), com Stuart Price, no comando da produção é um caso perfeito: uma viagem contínua, sem pausas, como se fosse uma noite inteira condensada num só disco. Até hoje, para mim, é um dos álbuns mais perfeitos da história da pista de dança: elegante, contínuo, pensado milimetricamente.

 

Momentos que mudaram o jogo

 

Entre dezenas de temas que se poderiam citar, deixo três que, pessoalmente, representam esta metamorfose:

 

- “Ray of Light” (1998)

Uma catarse. Uma explosão eletrónica que mostrou ao mundo que a espiritualidade podia conviver com o techno. Sempre que oiço, sinto que estou a voar.

 

- “Music” (2000)

Aquele drop inicial lembra-nos porque o cowgirl cyber-pop se tornou tendência. Madonna dizia que a música nos unia e tinha razão.

 

- “Hung Up” (2005)

O casamento improvável que se tornou icónico: ABBA + disco + house + glitter + atitude. É impossível não dançar.



O impacto que não abranda

 

Passaram décadas, estilos, modas, plataformas. E, ainda assim, o ADN de Madonna continua presente em tudo: na pop hiper eletrónica, nas divas que apostam no tecno, nos remixes que se tornaram essenciais, no renascimento do disco sound… e na forma como a pista se assumiu como espaço cultural, e não apenas recreativo.

 

Ser fã de Madonna é isto: assistir à história a ser escrita em tempo real.

E é também reconhecer que, sem ela, a cultura da noite, e a música eletrónica, não seriam o que são hoje.

0 comentários


Há filmes que chegam para cumprir uma promessa e outros que chegam para a ultrapassar. Para mim, “Wicked: Pelo Bem” pertence claramente à segunda categoria. Se a primeira parte já me tinha deixado rendido ao universo renovado de Oz, este segundo capítulo agarrou-me pela emoção, pela grandiosidade e, sobretudo, pelo modo como celebra duas mulheres que, juntas, são pura força transformadora. Saí do cinema a pensar: “é por isto que adoro musicais”.



A luz, a sombra e tudo o que existe entre as duas

 

Cynthia Erivo e Ariana Grande são, sem exagero, um acontecimento. A química entre ambas é daquelas que não se força, sente-se. Erivo, com aquela presença intensa e uma voz que arrepia, dá a Elphaba uma dignidade que transcende a personagem; Ariana, por sua vez, surpreende ao encarnar uma Glinda que não é só brilho, mas também fragilidade, crescimento e coragem. Sempre que as duas partilham o ecrã, tudo o resto desaparece. E confesso: houve momentos musicais em que senti o coração a bater mais depressa, como quando um musical em grande escala atinge aquela nota emocional perfeita.

 

O filme é um regalo visual. Há cenários que parecem pinturas, figurinos que poderiam muito bem sair de um editorial de alta-costura, e uma direção artística que abraça o “teatral” de forma intencional, elegante e arrebatadora. Percebe-se que houve um cuidado extremo em manter o espírito do musical original, mas também em modernizá-lo, torná-lo mais acessível, mais cinematográfico, mais… mágico.

 

 

E depois há a mensagem, tão mais adulta do que muitos imaginam. A forma como se fala de poder, de verdade manipulada, de como a sociedade escolhe quem idolatra e quem demoniza, é surpreendentemente atual. Elphaba continua a ser o espelho de todos aqueles que nunca se encaixaram, e Glinda representa o conforto sedutor de ser sempre “a boa”, mesmo quando isso exige silêncio. Esta dualidade dá ao filme uma profundidade que não vi discutida o suficiente e que, para mim, é uma das suas grandes forças.

 

 

O impacto de um final que fica connosco

 

Tenho lido várias críticas que apontam falhas ou desequilíbrios, mas, honestamente, para mim isso quase não importa, ou melhor, importa menos do que a sensação que levei comigo. Sim, talvez o foco narrativo oscile mais para a Glinda, talvez certas passagens se estendam um pouco, mas nada disso me tirou do encantamento. Pelo contrário: senti que o filme me deu exatamente aquilo que precisava: emoção, espetáculo, entrega e um desfecho que honra tudo o que veio antes.

 


Quando os últimos acordes soaram, percebi que estava ali a assistir não só ao fim de uma história, mas ao culminar de uma amizade que marcou o cinema recente. Saí a pensar em como ambos os filmes falam sobre sermos vistos, compreendidos e, acima de tudo, sobre termos o direito de criar o nosso próprio destino. E isso, quando dito através de canções poderosas e duas protagonistas brilhantes, ganha um significado muito especial.

 


No fim de contas, “Wicked: Pelo Bem” não é apenas um musical exuberante; é uma celebração da diferença, da coragem e da escolha de fazer “o bem” mesmo quando o mundo tenta empurrar-nos para o contrário. É a magia de acreditar no impossível. E eu adorei, mesmo. É o tipo de filme que levo comigo, que volto a pensar dias depois, e que me lembra porque é que continuo apaixonado por cinema.

0 comentários


Há histórias que me deixam sempre maravilhado pela forma improvável como o mundo decide funcionar. A do Guia Michelin é uma delas, e talvez a mais improvável de todas. É delicioso pensar que aquilo que hoje decide carreiras, transforma cidades e mexe com o ego de chefs no mundo inteiro nasceu de uma inquietação muito simples: ninguém conduzia. E, se ninguém conduzia, ninguém gastava pneus.

 

No ano de 1900, havia menos de três mil automóveis em toda a França. A Michelin, que hoje associamos a inovação e estrada, enfrentava um problema quase cómico: como vender algo que ninguém tinha necessidade de substituir? Como lembra um artigo recente da Vogue, os irmãos André e Édouard Michelin perceberam que era preciso “galvanizar os motoristas a desenvolverem as suas viagens e, assim, aumentar as vendas de pneus”. Em vez de esperar que o mercado crescesse sozinho, decidiram criá-lo.

 


O imprevisto que mudou tudo

 

E assim nasceu um pequeno guia vermelho oferecido gratuitamente, pensado para ajudar motoristas a aventurarem-se pelo país. Trazia mapas, oficinas, dicas práticas e, quase como um gesto secundário, sugestões de restaurantes. O objectivo era tão pragmático quanto engenhoso: fazer as pessoas viajar. Quanto mais quilómetros, mais desgaste; quanto mais desgaste, mais pneus; e quanto mais pneus, mais Michelin.

 

Acontece que o que mais cativou os leitores não foram as oficinas nem os postos de combustível. Foram os restaurantes. Era naquela pequena secção que as pessoas dobravam páginas, deixavam notas, faziam debates e procuravam inspiração para uma escapadinha. Era ali, sem os irmãos Michelin se aperceberem, que viria a nascer um novo mundo.

 

 

O nascimento das estrelas

 

Com o passar do tempo, a Michelin percebeu que a gastronomia era mais do que um mero complemento. Em 1926, introduziu as primeiras estrelas. A ideia não tinha nada de glamoroso: era uma simples orientação para viajantes. Uma estrela, valia a paragem; duas, justificava o desvio; três, merecia a viagem inteira. Ainda hoje acho genial a subtileza deste raciocínio: cada estrela era, na verdade, um convite à estrada, um incentivo directo ao consumo do próprio produto da marca.

 

A partir daí, o Guia Michelin deixou de ser apenas um serviço ao viajante para se transformar numa instituição cultural. A Vogue resume isso de forma perfeita ao dizer que “a palavra do guia é evangelho e as suas estrelas as distinções mais cobiçadas da restauração”. E é impossível negar. Um restaurante que recebe uma estrela muda de vida. Dois, eleva-se. Três, entra na eternidade. E a pressão, essa, é tão intensa quanto o brilho.

 

 

Também gosto da anedota que marcou o momento em que o guia deixou de ser gratuito. André Michelin visitou um dia uma oficina e encontrou exemplares a serem usados como calço para uma mesa. Indignado, disse a frase que mudaria tudo: “o homem só respeita aquilo por que paga”. No ano seguinte, o guia tornou-se pago e o respeito apareceu com ele. O que antes era um folheto prático transformou-se num símbolo de autoridade.

 

Com o tempo, o Guia Michelin criou carreiras, fortaleceu destinos, aumentou o turismo gastronómico e também colocou uma pressão enorme sobre quem vive entre tachos e panelas. Surgiram lendas, episódios de glória e até alguns de renúncia: chefs que devolveram estrelas para recuperarem a liberdade. E, no meio disto tudo, nasceram também os inspetores Michelin, figuras quase míticas que avaliam anonimamente, pagam as próprias refeições e vivem em sigilo. São os agentes secretos da gastronomia, silenciosos e invisíveis, mas determinantes.

 


A explosão global

 

Hoje, o Guia Michelin está presente em dezenas de países, adapta-se, expande-se, inclui street food, celebra sustentabilidade através das estrelas verdes e continua a reescrever a geografia da gastronomia. Onde chega, transforma. Onde atribui estrelas, ilumina. Onde passa, deixa, sem dúvida, um rasto de expectativa.

 

E, ainda assim, não consigo deixar de pensar na ironia original. Porque tudo, absolutamente tudo, começou com uma tentativa de vender pneus. Não é incrível? Um truque de marketing tornou-se a bíblia da gastronomia. Uma necessidade comercial deu origem a um dos maiores símbolos de excelência que existem. Da borracha ao ritual, da estrada ao prato, do pragmatismo ao prestígio.

 

É por isso que esta história me fascina tanto. Lembra-nos que as ideias têm caminhos próprios, muitas vezes mais ambiciosos do que imaginamos. E que a criatividade, especialmente quando nasce de um problema, pode transformar o mundo de forma inesperada.

 

 

Hoje, sempre que entro num restaurante estrelado, penso que estou, de certa forma, a participar na mesma história que começou há mais de um século, com um livrinho vermelho nas mãos de dois irmãos visionários que queriam apenas que conduzíssemos mais. E conduzir, sobretudo quando nos leva a uma boa mesa, continua a ser uma das grandes delícias da vida.

0 comentários

 


Há filmes que chegam envolvidos em expectativas, outros em nostalgia, e depois há aqueles que, mesmo antes de os vermos, já carregam o peso de uma discussão maior. “The Running Man”, o remake realizado por Edgar Wright e protagonizado por Glen Powell, pertence claramente à terceira categoria. Não é apenas mais uma adaptação de Stephen King; é um espelho cintilante e desconfortável de tudo aquilo que consumimos hoje, quando o entretenimento se mistura perigosamente com a crueldade e a manipulação.

 

Antes de avançar para o novo filme, vale recordar que esta história já tinha passado pelo cinema em 1987, numa versão muito diferente, com Arnold Schwarzenegger a vestir a pele de Ben Richards. Era um produto típico dos anos 80, cheio de ação estilizada, vilões exagerados e aquele futurismo de neon tão característico da época. Não tinha a sofisticação deste remake, nem a profundidade do romance original, mas deixou a sua marca como um clássico de culto e, curiosamente, já lançava as primeiras pedras da crítica ao espetáculo televisivo e à manipulação mediática. É interessante perceber como aquilo que parecia exagero naquela altura soa hoje quase premonitório.

 


Feito este regresso rápido ao passado, voltemos ao presente. O “The Running Man” de 2025 é uma máquina visual, pulsante, saturada de cor e energia, construída ao milímetro para nos colocar dentro de um futuro onde a audiência manda, as corporações decidem quem vive e quem cai, e a dor humana é convertida em conteúdo televisivo. A estética é frenética, cheia de ecrãs, luzes e ritmos que não deixam quase respirar, e essa é precisamente a intenção. Wright quer que sintamos o peso do espetáculo. Quer que nos vejamos ali. E o resultado surpreende: visualmente poderoso, acelerado, saturado de energia, como se o próprio ecrã estivesse permanentemente a piscar-nos o olho. Um futuro onde a audiência manda, onde a dor é espetáculo e onde a verdade é, no mínimo, maleável. E a sensação que fica é justamente a de que estamos perante algo demasiado próximo da realidade para ser apenas ficção.

 

O Ben Richards de Glen Powell, que tem aqui um dos papeis mais completos da sua carreira, é um protagonista mais vulnerável e mais humano do que o da versão dos anos 80. Aqui, ele é um homem empurrado para o limite: perde o emprego, vê a filha doente, e aceita participar num reality show que transforma seres humanos em caça televisiva. Ou seja, acaba por ser arrastado para um jogo televisivo onde se torna caça num tabuleiro dominado por interesses corporativos. Powell, um herói relutante, moldado tanto pela necessidade, como pela consciência de que o jogo está viciado desde o início, brilha como nunca, alternando entre o humor, a tensão e uma inquietação muito real que puxa a história para um lugar mais emocional.

 

 

A crítica tem sido unânime em destacar a estética vibrante e o ritmo quase implacável que Wright imprime ao filme e não posso deixar de concordar. Todo o universo é construído com uma intenção clara: somos nós, hoje, levados ao extremo. A avalanche de informação, a sensação de que tudo está a ser filmado, editado, manipulado e servido fresco no feed seguinte. Há momentos em que a distopia se dissolve e o que fica é uma impressão inquietante de familiaridade. Ao olhar para aqueles cenários hiperdigitalizados, não pude evitar pensar na forma como, todos os dias, consumimos microversões desta lógica: a indignação, o escândalo, a humilhação, o ódio, a violência subtil, tudo embalado para gerar cliques.

 


Quando o espetáculo engole a verdade

 

Mas o filme não vive apenas das interpretações. A crítica social está lá, explícita, ácida, quase desconfortável: a manipulação da verdade, a fabricação de narrativas falsas, o consumo voraz de sofrimento como entretenimento: tudo é demasiado familiar para nos provocar apenas como ficção. Ao vermos aquelas multidões hipnotizadas por ecrãs e aqueles produtores a moldar a realidade como quem edita um vídeo de TikTok, temos a sensação de que Wright não está a imaginar um futuro… está apenas a ampliar o presente.

 

O lado menos conseguido talvez seja o final, que aposta mais no espetáculo do que numa reflexão mais íntima. Sente-se, por momentos, que o filme quer dizer demasiado, demasiado depressa, e com tanto fulgor que parte da mensagem se perde um pouco no ruído. Ainda assim, o impacto não se dilui. Continua a ser uma obra que provoca, que se instala no pensamento e que nos acompanha depois de sairmos da sala.

 


No conjunto, “The Running Man” é um filme que não deixa ninguém indiferente. Pode não ser perfeito, mas é certeiro. Faz pensar sem abdicar do ritmo, diverte enquanto provoca, e obriga-nos a encarar a forma como consumimos imagens, e como elas, muitas vezes, nos consomem de volta. Saí da sala com aquela sensação agridoce de quem sabe que viu algo atual, urgente e estranhamente próximo. E é por isso que o recomendo: não só como entretenimento, mas como uma reflexão embrulhada em ação e crítica mordaz. Talvez seja esse o verdadeiro mérito do filme: a capacidade de nos acompanhar para lá dos créditos finais.

 

Se gostam de cinema que nos faz olhar de lado para o nosso próprio mundo, então este vale claramente a ida ao cinema. Mesmo que seja apenas para perceber até que ponto estamos dispostos a ser espectadores... ou cúmplices.

 

Na antestreia do filme, com a minha amiga Cidália (NOS Colombo - Sala Imax)

 

0 comentários

 


Há histórias que nos lembram, de forma quase poética, que a genialidade por vezes nasce de um gesto simples. Esta que vos vou contar, de Yuko Shimizu, a criadora de Hello Kitty, é uma delas. E confesso: tocou-me profundamente pelo simbolismo, pela persistência e pelo impacto invisível das pequenas ideias que teimam em não desaparecer.

 


A genialidade que nasceu de um desenho silencioso


Yuko Shimizu era uma jovem designer japonesa, nascida a 1 de Novembro de 1946, que trabalhava na Sanrio, uma pequena empresa especializada em produtos de papelaria e presentes, então ainda em fase de expansão. Durante as suas pausas para almoço, começou a desenhar uma gatinha sem boca, com um laço vermelho e um semblante sereno. Um desenho minimalista, quase infantil, nascido de um momento de quietude no meio da rotina.


O que Yuko não imaginava é que, apesar do carinho que colocava naquele pequeno esboço, a reacção inicial seria tudo menos encorajadora. Quando apresentou o projecto, os executivos da Sanrio não viram potencial. Disseram-lhe que era “simples demais”, que não tinha expressão, que resultava “básico demais” para gerar qualquer interesse comercial. A sua nova personagem foi rejeitada várias vezes. Em algumas narrativas, mencionam exactamente 47 vezes. Quarenta e sete, leram bem. E esta persistência é uma das faces mais belas da história.


E se a persistência era grande, a visão era maior. A maioria teria desistido muito antes, mas Yuko não. Continuou a acreditar na sua criação, no valor da simplicidade, na força silenciosa daquela gatinha. E foi essa fé tranquila que mudou tudo.



De ‘simples demais’ a fenómeno mundial


Em 1974, a Sanrio acabou por ceder. Lançaram Hello Kitty num pequeno porta-moedas transparente, quase como um teste tímido. O resultado? Esgotou imediatamente. Aquele lançamento experimental tornou-se o ponto de viragem. O que começou como um simples acessório transformou-se, pouco a pouco, num fenómeno cultural que conquistou o mundo. Hello Kitty evoluiu para brinquedos, roupas, linhas de beleza, colaborações de moda, aviões, restaurantes temáticos e até parques de diversões.


Atualmente, Hello Kitty é o ícone central de um império avaliado em mais de 80 mil milhões de dólares, ultrapassando franchises como Pokémon ou Star Wars em valor acumulado. Aparece em mais de 50 000 produtos distribuídos em mais de 130 países. O segredo, dizem alguns investigadores e especialistas, está na estética “kawaii” (ternura) e precisamente na escolha de Yuko: a personagem não tem boca. Porque assim, segundo a Sanrio, ela “fala pelo coração” e pode alargar-se a todas as culturas e idades, tornando-se universal. Essa ausência permite a cada pessoa projetar-lhe emoções próprias: “feliz”, “triste”, “sereno”, e isso cria uma ligação íntima com a personagem. E tendo Hello Kitty celebrado os seus 50 anos em novembro de 2024, vemos que não se trata apenas de nostalgia ou de merchandising. Trata-se de uma lição profunda sobre branding, design, persistência e cultura global.


E tudo isto a partir de um desenho que alguns executivos consideraram “simples demais”. O segredo, denotam, está na sua simplicidade intemporal: um design tão universal que transcende idade, idioma e cultura. Uma personagem que pode ser de todos e para todos.

 


 O valor das pequenas ideias: o legado de Yuko Shimizu

Yuko Shimizu reformou-se nos anos 80, mas o seu legado vive em cada produto, cada parceria, cada sorriso provocado por Hello Kitty. E vive, acima de tudo, na mensagem poderosa que deixa ao mundo: a rejeição não é o fim. É apenas o filtro que nos obriga a persistir e que separa quem sonha de quem constrói.


No fundo, a história de Hello Kitty lembra-nos que aquilo que hoje possa parecer “pequeno demais” pode, amanhã, tornar-se absolutamente inesquecível. Basta acreditar. Tal como Yuko acreditou.


E agora, quando celebra um pouco mais de meio século de existência, Hello Kitty continua a provar ao mundo o poder subtil, mas profundamente transformador, da ternura. No fundo, lembra-nos que as ideias mais simples podem atravessar gerações, unir culturas e inspirar vidas. Que esta história seja um lembrete de que nunca é tarde para acreditar no que criamos, nem para dar voz ao que nasce do nosso âmago. Porque, às vezes, basta um pequeno gesto para impactar o mundo inteiro.

 


 

0 comentários

 

Colleen Hoover regressa ao grande ecrã com um drama sobre perdas, segredos e recomeços... Baseado no livro “Regretting You”, desta autora, o filme “Sempre Tu” chega aos cinemas para explorar um dos temas mais delicados da vida: o reencontro entre mãe e filha depois de uma tragédia. Realizado por Josh Boone, o mesmo de “A Culpa é das Estrelas”, e contando com Allison Williams, Mckenna Grace e Dave Franco nos principais papéis, este drama romântico tenta equilibrar luto, perdão e amor com uma leveza que o torna, ao mesmo tempo, familiar e comovente.



E aqui vos venho falar deste filme, a que tive o privilégio de assistir à sua antestreia. A história centra-se em Morgan Grant (Allison Williams) e na filha Clara (Mckenna Grace), que vêem as suas vidas viradas do avesso após um acidente devastador que tira a vida ao marido de Morgan, Chris (Scott Eastwood), e à sua irmã Jenny (Willa Fitzgerald), tia e confidente de Clara. A partir desse momento, mãe e filha são obrigadas a enfrentar o vazio, as mágoas antigas e segredos há muito guardados, num processo doloroso, mas inevitável de reconciliação.

 

O argumento, assinado por Susan McMartin, adapta com fidelidade o romance de Hoover, que se tornou um fenómeno global. E talvez por isso, o filme parta já com uma carga emocional elevada, sobretudo para os leitores que se deixaram tocar pela escrita crua e íntima da autora. Colleen Hoover, que aqui assume também o papel de produtora executiva, confessou que se emocionou ao ver a primeira montagem: “Aquela cena era tão fiel ao livro que percebi logo que respeitaram a minha visão.”




Mas, como em quase todas as adaptações literárias, há perdas. Boone e o elenco esforçam-se para manter a densidade emocional do texto, mas “Sempre Tu” parece por vezes demasiado contido, como se tivesse medo de mergulhar verdadeiramente na dor. O luto surge mais como pano de fundo do que como força motriz. E é pena, porque o filme tinha matéria-prima para algo maior. Poderia ser um pouco mais intenso, mas tal como é, não deixa de nos emocionar...

 

Ainda assim, há momentos em que o filme encontra o seu tom. Boone volta a mostrar o cuidado em retratar o quotidiano com ternura: os gestos simples, os silêncios, o desconforto entre mãe e filha, e a fotografia delicada e a banda sonora intimista ajudam a criar esse ambiente de reconciliação. Mckenna Grace é o coração da narrativa: natural, carismática, convincente. Allison Williams mantém o equilíbrio entre fragilidade e força, e Dave Franco, mais contido, funciona como o contraponto emocional de Morgan, sem nunca lhe roubar o foco.

 


Franco, aliás, tem um motivo extra para ver o filme ganhar destaque em Portugal: o actor revelou, recentemente, numa entrevista, o seu orgulho pelas raízes madeirenses, herdadas do avô paterno, e deixou no ar a promessa de visitar o nosso país em breve. Tal não deixa de ser uma ligação curiosa e simbólica, já que “Sempre Tu” é também um filme sobre raízes, as que nos prendem e as que nos permitem recomeçar.

 

No fundo, esta é uma história sobre perdas que se transformam em pontes, sobre feridas que aprendem a cicatrizar e sobre relações que renascem da fragilidade. Boone evita o melodrama fácil e aposta numa condução sincera, próxima, quase doméstica. Mesmo quando o guião acelera ou se rende a clichés, e há alguns, a emoção consegue resistir.

 


“Sempre Tu” não é um filme perfeito, mas é um filme honesto. Fala sobre amor e arrependimento, sobre crescer e perdoar, e sobre a coragem de reconstruir o que parecia perdido. Como a própria Colleen Hoover costuma lembrar, “a vida é por vezes triste, tal como as nossas histórias, mas é no meio dessa tristeza que encontramos os momentos de verdadeira alegria.”

 

No fim, fica a sensação de que, apesar das suas fragilidades, “Sempre Tu” tem o "coração" no sítio certo. E talvez seja isso o que mais importa: lembrar-nos de que o amor, mesmo imperfeito, é sempre um ponto de partida e de regresso. E às vezes, são as histórias mais simples aquelas que nos "tocam" mais...

 


 

0 comentários