Há filmes que chegam envolvidos em expectativas, outros em nostalgia, e depois há aqueles que, mesmo antes de os vermos, já carregam o peso de uma discussão maior. “The Running Man”, o remake realizado por Edgar Wright e protagonizado por Glen Powell, pertence claramente à terceira categoria. Não é apenas mais uma adaptação de Stephen King; é um espelho cintilante e desconfortável de tudo aquilo que consumimos hoje, quando o entretenimento se mistura perigosamente com a crueldade e a manipulação.
Antes de avançar para o novo filme, vale recordar que esta história já tinha passado pelo cinema em 1987, numa versão muito diferente, com Arnold Schwarzenegger a vestir a pele de Ben Richards. Era um produto típico dos anos 80, cheio de ação estilizada, vilões exagerados e aquele futurismo de neon tão característico da época. Não tinha a sofisticação deste remake, nem a profundidade do romance original, mas deixou a sua marca como um clássico de culto e, curiosamente, já lançava as primeiras pedras da crítica ao espetáculo televisivo e à manipulação mediática. É interessante perceber como aquilo que parecia exagero naquela altura soa hoje quase premonitório.
Feito este regresso rápido ao passado, voltemos ao presente. O “The Running Man” de 2025 é uma máquina visual, pulsante, saturada de cor e energia, construída ao milímetro para nos colocar dentro de um futuro onde a audiência manda, as corporações decidem quem vive e quem cai, e a dor humana é convertida em conteúdo televisivo. A estética é frenética, cheia de ecrãs, luzes e ritmos que não deixam quase respirar, e essa é precisamente a intenção. Wright quer que sintamos o peso do espetáculo. Quer que nos vejamos ali. E o resultado surpreende: visualmente poderoso, acelerado, saturado de energia, como se o próprio ecrã estivesse permanentemente a piscar-nos o olho. Um futuro onde a audiência manda, onde a dor é espetáculo e onde a verdade é, no mínimo, maleável. E a sensação que fica é justamente a de que estamos perante algo demasiado próximo da realidade para ser apenas ficção.
O Ben Richards de Glen Powell, que tem aqui um dos papeis mais completos da sua carreira, é um protagonista mais vulnerável e mais humano do que o da versão dos anos 80. Aqui, ele é um homem empurrado para o limite: perde o emprego, vê a filha doente, e aceita participar num reality show que transforma seres humanos em caça televisiva. Ou seja, acaba por ser arrastado para um jogo televisivo onde se torna caça num tabuleiro dominado por interesses corporativos. Powell, um herói relutante, moldado tanto pela necessidade, como pela consciência de que o jogo está viciado desde o início, brilha como nunca, alternando entre o humor, a tensão e uma inquietação muito real que puxa a história para um lugar mais emocional.
A crítica tem sido unânime em destacar a estética vibrante e o ritmo quase implacável que Wright imprime ao filme e não posso deixar de concordar. Todo o universo é construído com uma intenção clara: somos nós, hoje, levados ao extremo. A avalanche de informação, a sensação de que tudo está a ser filmado, editado, manipulado e servido fresco no feed seguinte. Há momentos em que a distopia se dissolve e o que fica é uma impressão inquietante de familiaridade. Ao olhar para aqueles cenários hiperdigitalizados, não pude evitar pensar na forma como, todos os dias, consumimos microversões desta lógica: a indignação, o escândalo, a humilhação, o ódio, a violência subtil, tudo embalado para gerar cliques.
Quando o espetáculo engole a verdade
Mas o filme não vive apenas das interpretações. A crítica social está lá, explícita, ácida, quase desconfortável: a manipulação da verdade, a fabricação de narrativas falsas, o consumo voraz de sofrimento como entretenimento: tudo é demasiado familiar para nos provocar apenas como ficção. Ao vermos aquelas multidões hipnotizadas por ecrãs e aqueles produtores a moldar a realidade como quem edita um vídeo de TikTok, temos a sensação de que Wright não está a imaginar um futuro… está apenas a ampliar o presente.
O lado menos conseguido talvez seja o final, que aposta mais no espetáculo do que numa reflexão mais íntima. Sente-se, por momentos, que o filme quer dizer demasiado, demasiado depressa, e com tanto fulgor que parte da mensagem se perde um pouco no ruído. Ainda assim, o impacto não se dilui. Continua a ser uma obra que provoca, que se instala no pensamento e que nos acompanha depois de sairmos da sala.
No conjunto, “The Running Man” é um filme que não deixa ninguém indiferente. Pode não ser perfeito, mas é certeiro. Faz pensar sem abdicar do ritmo, diverte enquanto provoca, e obriga-nos a encarar a forma como consumimos imagens, e como elas, muitas vezes, nos consomem de volta. Saí da sala com aquela sensação agridoce de quem sabe que viu algo atual, urgente e estranhamente próximo. E é por isso que o recomendo: não só como entretenimento, mas como uma reflexão embrulhada em ação e crítica mordaz. Talvez seja esse o verdadeiro mérito do filme: a capacidade de nos acompanhar para lá dos créditos finais.
Se gostam de cinema que nos faz olhar de lado para o nosso próprio mundo, então este vale claramente a ida ao cinema. Mesmo que seja apenas para perceber até que ponto estamos dispostos a ser espectadores... ou cúmplices.

Na antestreia do filme, com a minha amiga Cidália (NOS Colombo - Sala Imax)




































